a Marlize partiu no carnaval - e este era o período do ano que ela mais comemorava: atravessava a madrugada assistindo aos desfiles do Rio, reunia a família em frente à TV pra apuração na quarta-feira de cinzas e torcia pra Beija Flor de Nilópolis. Eu sempre fui Mocidade, lembro que minha irmã era Salgueiro e meu irmão Portela. Este irmão, aliás, gostava de dizer que se a gente morasse no Rio, eu seria carnavalesco. Adorei a ideia, e talvez por isso seja assim que eu construo cada trabalho com enredo, tema, sessões, a homenageada, etc.
Na apuração desse ano olho pra Marlize e pra sua história, que teve um enredo nota 10. Ela e meu pai fugiram em 1963, tiveram 6 filhos e permaneceram casados por 55 anos, até que ela ficou viúva em 2019. Nota máxima também para o casal de mestre-sala e porta-bandeira.
Para as bodas de 50 anos, tive a honra de fazer o vestido da noiva, onde fomos padrinhos e dançamos a valsa juntos.
A Marlize sempre nos estimulou o gosto pela música. Ela acordava cantando, o rádio nunca estava desligado e ela fazia seus próprios improvisos, misturando as músicas, trocando palavras, mixando melodias. Era um gosto simples, mas essa combinação de remixes traz hoje uma lembrança ímpar. Para o samba-enredo, a nota é 10.
No quesito bateria, temos a Marlize como Rainha. Aliás, bateria era o som do coração de viver junto com ela e tê-la como colaboradora. Para um concurso de fotografia que retratava o inverno curitibano no início dos anos 2000 em shopping hypado, ela encarnou uma moradora de rua pra minha foto. Pra exposição de 2005, ela posou com os seios de fora e foi exposta no Nick Havana, no SESC Centro e na Boite Studio 1001, depois - recostada nela mesma, e essa foto está na parede do ateliê daqui e sempre esteve na parede do ateliê da Prudente enquanto estivemos por lá. Nunca dividiu opiniões e com isso conquistou sua nota10.
Outras colaborações com a Marlize aconteceram até 2020, quando a pandemia interrompeu nosso processo de pintura nas camisetas. Depois de sofrer um AVC e ficar com o corpo paralisado com exceção da mão direita, nós embarcamos num processo só nosso onde eu colocava a peça no bastidor, levava a tinta ao pincel na sua mão, e minha mãe se lançava com memórias, auto-retratos e aves, sobre a malha de algodão. Nós gravamos inúmeros vídeos durante esse período, eu arguia seu cabelo, rabiscava-lhe os olhos e a gente se entrevistava e respondia perguntas dos seus fãs e amigos. A Solange Rosenmann sugeriu um livro da artista e demos início aos desenhos em grafite - estes foram os últimos desenhos, no início de 2020, antes do Narciso anunciar sua chegada.
No quesito Harmonia, a Marlize emprestou sua voz pro desfile de "última sessão" em 2012, e na mesma coleção teve um paralelo de sua história em esquadro com a abertura do cine Ritz na capital paranaense. Sua figura materna foi retratada em 2009 na coleção "les fleurs pour Marlize", apresentada no Hacienda Café - e a Marlize foi com os seios à mostra no desfile de "camisa-de-força" no PBC de 2011. Ainda sobre "les fleurs...", foi com estas peças que abrimos nossa primeira loja na Prudente de Moraes no fim da década do ano 2000, e seu rosto estampou nosso stand na edição do mesmo ano do Crystal Fashion. Harmonia: nota 10.
Defendendo os pontos da categoria Evolução, tudo começou na lavanderia do apartamento que a gente morava. Lá instalamos o primeiro ateliê da H-AL, ela me presenteou com sua máquina de costura, o tingimento secava no varal e a primeira gestão precisou coordenar o funcionamento de uma indústria com a lavanderia de uma casa com 4 pessoas. Se deu certo? Nota 10!
A mesma Solange que sugeriu o livro da Artista em 2019, foi minha coordenadora durante o estágio no Museu Oscar Niemeyer em 2005. Um dos projetos que foram prospectados pela Ação Educativa, eram livretos com ilustrações do Raphael Teles ligando o contexto das exposições do Museu com a visitação e entendimento dos alunos. Numa das histórias, estava eu criança, passeando de mãos dadas com minha mãe e me apaixono por uma folha que cai da árvore do bosque. O estágio acabou, os livretos não foram lançados, mas a ilustração foi feita e aquele primeiro registro coroou uma série de homenagens e colaborações, foi a primeira alegoria dentro do trabalho autobiográfico que desenvolvo junto com a Thifany na H-AL hoje. Como musa, como estrela, Alegorias e adereços, nota 10.
O objetivo dos integrantes da comissão de frente é impactar o público e apresentar a escola. Em 2010 a gente participou do desfile da IC!Berlin no Mercedes-Benz Fashion Week, na Alemanha, trazendo como tema a Santa Luzia (IC!Berlin é uma empresa de óculos e a Santa Luzia é a padroeira da visão). Para apresentar a santa e sua história antes do desfile, a Marlize interpretou a benzedeira com a tradicional oração dos olhos, junto da minha irmã Eliana e da minha sobrinha Letícia, mostrando a perpetuação e tradição da reza. Foi lindo, e pra comissão de frente nota 10!
Faltou fantasia. A Marlize foi a típica dona de casa do início dos anos 60, devota de uma legião de filhos, marido, sogro e cunhado, com uma das filhas necessitando de cuidados especiais, com histórias assombrando-lhe os ouvidos. Sob a sombra do conservadorismo e do machismo, seu caçula seguiu pra criação de moda - vestido drag queens. Antes de condenar, ela era modelo. Quando era pra costurar, ela presenteava-lhe com a máquina de costura. Quando era pra desfilar, ela chegava com o peito aberto. Quando existe o amor, as certezas e convicções ficam rotas. Hoje eu sou pai, somos mães, entendo seu zelo e cuidado - e todos os ensinamentos carrego comigo. Hoje sou incrustado dela e tenho a certeza de que na semana seguinte ao carnaval, acontece o desfile das campeãs. Hoje é seu sétimo dia de falecimento, primeiro sétimo dos 49 dias do bardo que ela atravessa agora, onde se descortinam as ilusões. Aprendemos um com o outro a pluralidade da vida e hoje atravessamos de mãos dadas para a outra margem. OM GATE GATE PARAGATE PARASAMGATE BODHI SVAHA.
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