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maio 015

 

muitas

cáries

numa

Boca Maldita

 

Moda no palco, por Nereide Michel

 

Alexandre Linhares não tem medo de correr riscos. O risco que corre é o percorrido pelas linhas de sua costura e estas nem sempre são previsíveis. Dependem do seu olhar e do que ele quer expressar através de inspirações que podem levá-lo além da porta envidraçada do seu atelier/loja na Prudente de Moraes. Correr riscos e não temer desafios são inerentes ao processo criativo do artista. Caso contrário a pintura continuaria a exercer unicamente o papel da fotografia quando esta ainda não existia. E teria espaço para ela nos dias de hoje? Mas surgiram portinaris e picassos, modiglianis e volpis, para nomear apenas alguns pintores do século mais próximo ao do XXI, para testemunhar que arte sem correr risco não é arte.

Alexandre Linhares é designer de moda. A roupa, para ele, é a maneira de dizer o que pensa e o que sente do que vê ao seu redor. E a veste quem com ela se identifica – sabe que não está portando apenas um vestido, uma camisa, uma saia ou uma blusa. Está expondo emoções como as que são despertadas diante de um quadro, quando se ouve uma música ou se dá atenção ao que diz um escritor. Por isso, nada mais natural a passarela escolhida por Alexandre Linhares para apresentar a coleção da Heroína, sua marca, “muitas cáries numa Boca Maldita”: o palco do Guairão. Cortinas cerradas para a platéia das poltronas, mas abertas para um público que antemão já esperava ser impactado pela obra de um artista, ops, designer já conhecido por suas atuações performáticas. Tendo a moda onipresente mas, nem sempre lhe dando uma função meramente vestível. Alexandre já permaneceu horas impassivelmente no cruzamento da movimentada Visconde de Guarapuava, em frente à igreja dos casamentos chiques, vestido de noiva. Foi enrolado por centenas de metros de fitas, que quase o sufocaram, para dar o seu grito contra a industrialização que oprime o trabalho que é produzido com fios e agulhas pelas mãos do artesão. As cáries, que expôs em um palco de grandes espetáculos, ele as detectou no escancarar de um sorriso, usualmente discreto, reveladas em uma “boca maldita”. Não é coincidência de nome. A Boca Maldita é a mesma que concentra na quadra entre a  Ébano Pereira e a Praça Osório – um dos mais famosos pontos turísticos de Curitiba – os cidadãos adeptos de um cafezinho e de falar o que querem e ouvem, nem sempre, o que gostariam. Mas é de direito de todos os seus frequentadores a livre expressão de  pensamentos e posicionamentos.

Pois neste cenário liberal pairava livre e solto um personagem chamado Gilda que nos anos 70 virando para os 80 também tinha uma boca maldita, que pintava de vermelho forte, sem se importar com o batom borrando além dos lábios. Sua moda era bem peculiar, pois Gilda se vestia de… Gilda, usava o que tinha disponível acrescentando à sua produção uma “estética” descompromissada das tendências da temporada. Gilda era irreverente e  por isso mesmo temida. Uma moeda pedia pra sobreviver e caso não a recebesse pobre “pai de família” ganhava em troca o seu escandaloso beijo. Na certidão de nascimento, Rubens Aparecido Rinke. Contudo, Gilda não se deixava prender pelos padrões ditados por documentos. Sofreu preconceito? Nunca se fez vítima dele por que para ela o preconceito era o outro. Gilda tinha a Rua XV, que já era das Flores, como seu palco. Quem diria que um dia estaria no palco do Guairão… Musa inspiradora do desfile performático, permeado pelo protesto contra preconceitos, da Heroína, de Alexandre Linhares, foi lembrada por quem dela já sabia e foi conhecida por quem dela nada sabia. O impacto da apresentação da coleção “muitas cáries em uma Boca Maldita” ficou evidente nas fisionomias, algumas desconcertadas, outras de “alma lavada”, reveladas assim que as luzes se acenderam denunciando o final do espetáculo.

 

Moda é teatro? Sem trocar papéis, ela pode sim servir-se, com toda a intimidade de gente que se conhece há muito tempo, de seus recursos para mostrar uma coleção: inspiração, cenário, trilha sonora, iluminação… Roupas e acessórios podem ser pensados para cumprir todo o ritual de uma peça a ser levada ao palco. Mas ao contrário do que acontece numa encenação, não viram figurino. Devem despertar na platéia o desejo de serem usados. O super impacto do desfile da Heroína provocou esta vontade consumista? Ser artista e falar para uma platéia já sensibilizada com a sua obra ou ampliar a sua clientela?  Talento e conhecimento Alexandre Linhares tem para seguir pelo caminho de sua escolha: manter-se fiel aos seus preceitos e interpretar cada roupa como uma manifestação artística ou dar uma chance para que a sua moda alcance um público maior – que ainda está à margem do seu trabalho e pode ser conquistado com uma dose de emoção gerada pelo glamour inerente ao universofashion. Isso sem perder os porquês que o levaram originalmente  à uma máquina de costura.

A resposta está com Alexandre Linhares.

Ieda Godoy em fotos de Marcel Fernandes

Marco Aurélio em fotos de Alexandre Linhares

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